quarta-feira, 25 de junho de 2025

Speakers' Corner 38

A via da conciliação

No ano de 327 a.C., na antiga Báctria, hoje parte do Afeganistão, Alexandre, o Grande, desposou a bela Roxana, filha de um nobre persa. O gesto, mais do que político ou romântico, foi a afirmação de uma ideia poderosa: a de conciliação. Alexandre, educado por Aristóteles e considerado o maior estratega militar da história, não se limitou a conquistar territórios e a derrotar exércitos, procurou unir culturas, numa fusão entre múltiplas nações, línguas, etnias e raças, num império de simbiose, não de supremacia.

Dois mil e trezentos anos depois, o mundo parece ter esquecido a lição de Alexandre. A recente escalada de tensão no Médio Oriente, com o surpreendente, embora previsível, ataque aéreo americano ao Irão, utilizando, mais uma vez, as valências de gasolineira no centro do Atlântico da Base das Lajes, revela até que ponto a diplomacia e o diálogo cederam ao estrépito das bombas e à retórica da destruição.

O Ocidente olha para o Irão quase exclusivamente através do véu da teocracia islâmica xiita. Há, no entanto, um erro profundo nessa visão redutora e obscurecida. Ignoramos que o Irão não é apenas um regime, é uma civilização com mais de quatro milénios. Herdeira da antiga Pérsia, berço de avanços intelectuais, artísticos e políticos que moldaram muito do que hoje consideramos pilares da modernidade e da nossa própria civilização, desde a ideia de unidade política territorial à administração pública, da tolerância religiosa à poesia mística.

Reduzir esta complexidade à figura dos aiatolás ou a um inimigo geopolítico é não só injusto e limitado, é profundamente perigoso. Ao ignorarmos o valor histórico e cultural de um povo, abrimos caminho à sua desumanização. E esse é sempre o primeiro passo para a barbárie. Com a agravante de que, numa guerra pela superioridade, aqueles que não temem a morte serão os primeiros a prevalecer.

A atual política externa americana, marcada pelas decisões erráticas e egocêntricas de Trump, alimenta esta lógica maniqueísta e belicista. Desprezando o contexto, confundindo força com liderança, misturando castigo com solução, gerando apenas vazio. E é nesse vazio que se alimentam o ressentimento e o radicalismo, numa avalanche de consequências imprevisíveis.

O que fará a China? Fará cair a sua força militar sobre Taiwan? Putin terá aqui a porta aberta para acelerar ainda mais os seus intentos de domínio territorial sobre a Ucrânia e, quem sabe, sobre o Báltico? E como reagirão a Índia e o Paquistão, ambos potências nucleares? Está a Europa preparada para o recrudescer do horror do terrorismo? E o que fará o Irão, não hoje, mas no futuro?

No TikTok, imagens de rituais xiitas de homens a bater no peito em honra do martírio de Hussein Ibn Ali na batalha de Carbala, em 680 d.C., tornaram-se virais. Para o nosso olhar ocidental, é um espetáculo incompreensível. Mas para milhões de crentes, é a expressão de uma memória coletiva fundada na dor e na resistência, onde o conceito de sacrifício é o elemento fundacional da sua própria visão da vida. Não entender isso é não entender a alma da nação xiita e a identidade do atual Irão, país moldado por essa ideia de martírio. Combater essa visão com mísseis e bombas GBU-57 é como tentar apagar um fogo com gasolina.

O Ocidente, enquanto entidade política e civilizacional, baseada na democracia liberal, no primado da vida humana e nas liberdades individuais, não se deve vergar aos totalitarismos. Mas também não se pode impor ao resto do mundo pela via da destruição. Num tempo em que os líderes mundiais parecem obcecados com o poder e a conquista pela obliteração do outro, talvez valesse a pena lembrar que as civilizações não se constroem com mísseis, mas com ideias. O futuro ergue-se com palavras, não com bombas. Como Alexandre demonstrou ao unir-se a Roxana. E que a via da conciliação é o único caminho que pode evitar que o mundo, mais uma vez, tropece na sua própria arrogância.

 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Speakers' Corner 37

A Vertigem do Fim

Vivemos tempos perturbados. Um pouco por todo o mundo, a loucura impõe-se devastadoramente sobre a vida das pessoas. O ódio tomou conta dos areópagos políticos. O declínio moral, institucional e até humano parece ser o único caminho à nossa frente, como uma frenética avalanche desmoronando-se sobre a montanha das nossas vidas.

Abrimos os jornais, os poucos de nós que ainda os leem, ou percorremos mecanicamente os infinitos canais de notícias, e somos assoberbados por inacreditáveis parangonas, excitações várias, constantes alertas noticiosos e comentários facciosos, num interminável caleidoscópio de embriagada alucinação.

A Europa, outrora um projeto civilizacional de paz e prosperidade, submete-se agora ao desvario da economia de guerra. Passámos do pacote da PAC para o míssil PAC-3. Os discursos políticos fazem-se em torno do medo, da ameaça, da necessidade de se estar “preparado” para um inimigo imposto, mas nunca da urgência de se estar lúcido ou do imperativo de se ser justo.

Israel, sob a liderança de um governo extremista e ultraortodoxo, bombardeia a teocracia iraniana num conflito de consequências inimagináveis. O Médio Oriente volta a arder, como se alguma vez tivesse deixado de arder, e o mundo, que já deixou de se espantar, assiste em silêncio cínico ao genocídio e à obliteração cega e mútua de eternos e inquebrantáveis inimigos. E somos todos cúmplices nessa incapacidade de regressar à raiz da alma, como apelou Rumi.

Em Espanha, um dos últimos redutos da esquerda na Europa, Sánchez estremece com escândalos sucessivos que envolvem corrupção, misoginia e jogos de poder rasteiros. Uma democracia em erosão, onde as instituições vão perdendo credibilidade a cada nova gravação escondida que vem a público.

Por cá, em Portugal, a violência verbal saltou das redes sociais e dos discursos políticos para as ruas, transformando-se em violência real, palpável, física. Sob o disfarce do populismo, a intolerância fascista voltou a ganhar espaço e, o que é mais grave e paradoxal, aceitação. Relativiza-se o inaceitável, desculpam-se os que afrontam os direitos mais básicos, comparando o incomparável. E, no Brasil como cá, transforma-se o humor em crime, a sátira em insulto, a crítica em perseguição, em democracias corroídas pelo ácido do partidarismo.

Na América, outrora terra dos livres, desfilam paradas militares como nos regimes totalitários. Trump e Putin parecem hoje dois lados de uma mesma moeda, uma moeda cujo câmbio será sempre negativo. O sonho do Ocidente morreu. E talvez o mais inquietante seja justamente isso: o colapso da ideia de futuro. O cansaço do mundo é palpável, na linguagem e nos atos do dia a dia. A banalidade do mal, como assinalou de forma clarividente Hannah Arendt.

Na nossa pequenina realidade insular, percebemos agora, ou fingimos que só agora percebemos, que o Hospital Modular não passou de um esquema de contornos pouco claros, onde as decisões foram, no mínimo, erráticas, dúbias e precipitadas. A política tornou-se uma sucessão de gestos apressados e de anúncios vazios, feitos mais para encenação mediática do que para a resolução efetiva de problemas. A IA tomou conta das palavras, tal como o TikTok tomou conta das narrativas. Ao mesmo tempo, o drama subterrâneo das drogas sintéticas alastra pelas ruas, pelas casas, pelas famílias, como um vírus tóxico que se insinua na pele da sociedade.

Até o tempo parece conspirar com este mal-estar difuso: os nevoeiros de São João molham-nos até à alma, com a sua morrinha húmida e silenciosa. Há um clima de fim que paira no ar, um cansaço acumulado, um suspiro abafado, uma sensação de que tudo o que poderia ser feito já não será. Vivemos cercados por ruínas, algumas visíveis, outras escuras e interiores. O que nos resta é não perder a capacidade de espanto. A pulsão de resistência.

Talvez este não seja ainda o fim. Mas é, indiscutivelmente, o início dessa vertigem.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Speakers' Corner 36

História de um país sem rumo

Quem calcorreia hoje as ruas de Ponta Delgada, descendo da Machado dos Santos à António José d’Almeida, rumo à Matriz, dificilmente saberá quem foram esses expoentes do republicanismo que dão nome a duas das mais importantes artérias do nosso burgo. Machado Santos, vice-almirante, herói do 5 de Outubro, foi um perpétuo revolucionário, tido como o “pai da República”. António José d’Almeida, médico e opositor da monarquia, ficou conhecido por um manifesto publicado em Coimbra, na sua juventude, intitulado Bragança, o Último, que o levou à prisão e ao estatuto de herói republicano. Mais tarde viria a ser Presidente da República, entre 1919 e 1923. Ambos maçons, como muitos republicanos da época, simbolizam o espírito de um tempo dividido entre a agitação contestatária e a aspiração progressista. A Primeira República foi um imensamente agitado período de transição entre uma monarquia de setecentos anos e uma ditadura, que duraria quarenta e oito, e que pretendia vir repor uma certa organização e esteio a um país desgovernado. Nesses curtos 16 anos, Portugal teve 45 governos e 8 presidentes.

Se um futuro historiador olhar o país daqui a 100 anos, reconhecerá certamente as mesmas tendências, as mesmas aspirações populares incumpridas e os desmandos políticos de elites conspiracionistas. Provavelmente calcorreará ruas com nomes como Costa ou Montenegro, nomes que, como tantos outros, cairão também no esquecimento. A história, como dizia Mark Twain, não se repete, mas rima. E há, neste tempo que vivemos, uma impressão forte de fim de regime. Cinquenta anos após Abril, o país parece soçobrar sob o peso do que ficou por cumprir.

Dos famosos três D’s que Medeiros Ferreira levou ao Congresso Democrático de Aveiro, em 1973, e que Melo Antunes transportaria para o programa do MFA, a descolonização redundou num desastre, a democratização sucumbiu ao poder do capitalismo partidário, e o desenvolvimento coloca Portugal entre os países da UE com maior desigualdade na distribuição da riqueza. Só Bulgária, Roménia, Letónia e Lituânia nos ultrapassam nesse triste ranking do índice de Gini.

Se há ilação a tirar das últimas eleições, é a de que existe um descontentamento generalizado no país, um povo descrente e cansado e uma classe política incapaz de se regenerar e de incutir esperança nos eleitores. O mesmo historiador futuro, ou uma cartomante de agora, dirá, e com razão, que o momento é propício a sebastianismos, a líderes salvíficos que, acoberto de um manto de nada, como um nevoeiro diáfano, se apresentam como portadores da ordem, do bom-senso e do progresso, mesmo que falso e mentiroso e empacotado em insultos e alarvidades.

Quando o centro ruir, a democracia ruirá com ele. Muito provavelmente, o país elegerá um ex-almirante de fama vacinal para o cargo de mais alto magistrado da Nação. Um primeiro-ministro pouco transparente e de passado duvidoso cairá em desgraça num escândalo judicial envolvendo empresas e favores. Montenegro cairá, e o PPD cairá com ele. E, depois disso, um líder populista e demagogo poderá ascender ao poder, erguido em promessas doces e inebriantes de autoridade, limpeza e patriotismo. O velho e reconhecido “pôr ordem nisto”, ou o salazarento “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. A direita será toda ela populista, com tudo o que isso traz de reacionarismo e nacionalismo bacoco. O Almirante, então, dirá que o país precisa de estabilidade e dará o seu magnânimo aval a uma coligação entre Ventura e um qualquer Passos Coelho da vida. A esquerda, órfã e desorientada, será remetida a uma oposição triste e prolongada. E Portugal mergulhará, de novo, numa bem-comportada e resignada noite autoritária com o Almirante ao leme, de fato assertoado e barba grisalha, sabe-se lá com que rumo.

Oxalá me engane. Porque se não irei acabar os meus dias na frente de um qualquer pelotão de fuzilamento por delito de opinião e tráfico de liberdade de expressão.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Speakers' Corner 35

Crónica de um desastre anunciado

À hora em que escrevo, estes são os factos conhecidos: Sónia Nicolau, ex-militante socialista e candidata independente à Câmara Municipal de Ponta Delgada, terá sido contactada pela vice-presidente do Partido Socialista dos Açores e secretária-coordenadora do partido em São Miguel, Cristina Calisto, com uma proposta de coligação liderada pelo PS, na qual a candidata independente ocuparia o segundo lugar.

De acordo com um comunicado, Sónia Nicolau submeteu essa proposta à consideração dos seus apoiantes, que a rejeitaram por unanimidade.

Em declarações à Antena 1 Açores, Cristina Calisto assume o contacto, mas nega tratar-se de uma proposta formal de coligação, muito menos em nome do partido, afirmando que se tratou apenas de uma manobra exploratória, feita a título pessoal e individual, para aferir da sensibilidade de Sónia Nicolau perante a eventualidade de uma coligação.

Após um processo muito atabalhoado de escolha de candidatos, o PS parece incapaz de se alinhar numa estratégia coerente, ou sequer num rumo definido. Primeiro, geriu desastrosamente o dossier Sónia Nicolau, hostilizando e até vilipendiando uma militante e ex-deputada, de forma imprópria para um partido livre e democrático. Depois, Isabel Rodrigues, que no papel parecia ser uma escolha qualificada e aceitável, revelou-se um nado-morto, ausente, titubeante, dir-se-ia mesmo, desistente.

Depois da hecatombe eleitoral de maio último, o PS corre para apanhar os cacos de um partido em estado catatónico, sob ameaça de uma eutanásia eleitoral nas autárquicas que se aproximam. Mas nem o desespero de quem vê chegar o fim de uma era explica tantos erros, tanta incapacidade estratégica e tamanha inabilidade política.

Já o escrevi antes: Pedro Nascimento Cabral é um mau presidente. Errático, autoritário, sem visão. Bastaria a gestão do Mercado da Graça para lhe negar a reeleição. Mas há mais. A candidatura a Capital Europeia da Cultura, o seu triste desfecho, e a atual designação como Capital Nacional da Cultura 2026, mergulhada numa deriva populista, sem programa e à distância, a meros seis meses do início, são igualmente reveladores de um mandato vazio e desperdiçado.

Este era o momento ideal para o PS reconquistar a Câmara de Ponta Delgada, que não lidera desde 1989, quando a conquistou numa coligação encabeçada pelo centrista Mário Machado. Mas uma mistura de jactância com muita incompetência, desde os líderes da concelhia aos secretários de ilha, alguns dos quais optaram por paragens mais arejadas e pecuniosas, enquanto outros parecem agora enveredar por verdadeiras incursões kamikaze, feitas a título pessoal no campo adversário, até ao silêncio conspiratório do líder máximo, tudo contribui para que o PS se atire a um precipício eleitoral de difícil recuperação.

Sejamos claros: o líder do partido devia estar nos Açores a tempo inteiro e assumi-los como a sua prioridade. Devia, ele próprio, ser o candidato à principal câmara municipal da região.

Hostilizar Sónia Nicolau foi um erro. Oferecer-lhe o 2º lugar foi outro. Insistir em Isabel Rodrigues é um 3º erro. Não se compreende, aliás, como é que esta ainda se mantém na corrida, depois de ter sido publicamente menorizada pela sua própria secretária-coordenadora de ilha, que claramente não acredita nas hipóteses reais da sua candidata vencer esta eleição.

Neste momento, a única solução com dignidade para o PS-Açores é: (1) apoiar Sónia Nicolau. Esse, aliás, devia ser o caminho em todas as freguesias e concelhos das nove ilhas. Abrir o partido aos eleitores com humildade, proximidade e com candidatos reais, com efetiva presença e capacidade de trabalho no terreno; ou (2) sair da corrida, apelando aos seus militantes e simpatizantes para que colaborem num amplo movimento de cidadãos capaz de derrotar Pedro Nascimento Cabral que, enquanto isso, sorrindo impávido no conforto do seu gabinete aveludado, vai-se fazendo de morto como melhor forma de garantir a sua reeleição.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Speakers' Corner 34

A gloriosa derrota

O Benfica sofreu, domingo passado, uma derrota épica. Uma daquelas derrotas de proporções bíblicas, que ficam para a história, que atravessam gerações e se eternizam na memória coletiva dos que amam o clube e choram por aquela camisola. No final do jogo, as lágrimas de Di María eram as lágrimas de todos nós, adeptos sofredores, ajoelhados no chão em frente aos sofás, partilhando a mesma mágoa, a mesma dor funda e inexplicável do desaire final, na exaltação plena do falhanço absoluto.

De todos os desportos, o futebol é o que mais espelha a vida, como no amor ou na guerra, nele convivem, lado a lado, a glória mais suprema e a ruína mais devastadora. E talvez seja o único capaz de conferir à derrota um valor redentor, uma dimensão única de ensinamento e catarse coletiva. Perder, sobretudo perder daquela forma, dramática e castigadora, é uma experiência misteriosamente profunda e transformadora.

No futebol nada acontece por acaso e um jogo como a final da Taça, tem um histórico por trás, é o último jogo da época, já depois do campeonato resolvido, e este ano, essa resolução tinha ela própria uma história, um drama subjacente, como numa peça shakespeariana, em que múltiplas camadas de emoções e personalidades se imiscuem no tecido da trama trazendo consigo um peso trágico.

Três semanas antes, jogara-se o chamado “jogo do século”, um Benfica vs. Sporting onde o empate soube ao gosto amargo da cicuta. Na última jornada, os encarnados caíram na Pedreira e o Sporting impôs-se frente ao Guimarães. O campeonato ficou entregue, e os benfiquistas, com a resignação dos condenados, viram a sua equipa morrer na praia, como uma onda que se desfaz em som e espuma sobre a areia fina. O campeonato foi, este ano, um sonho recorrente, feito com frémitos equivalentes de êxtase e de pesadelo.

Ali chegados, na tarde quente do Jamor, a final da Taça parecia a última oportunidade de redenção para este Benfica. Uma réstia de esperança para uma equipa intimamente vencida. Aursnes e Di María, os dois jogadores mais marcantes da equipa, um pela magia, o outro pela sua ubíqua versatilidade, começavam no banco. No rosto de ambos adivinhava-se a gravidade do instante, no seu semblante pesado esse sentimento de impossibilidade perante o jogo e o adversário.

Mas o Benfica agigantou-se. Subjugou o campeão nacional com um futebol assertivo e inteligente, dominou o meio-campo, recuperou bolas, impôs ritmo. Ao intervalo, liderava no campeonato da honra, mesmo, como todos viram, contra um adversário que jogava com o reforço escondido do vídeo-árbitro.

No início da segunda parte, chegou o golo. Um remate impossível de Kökçü, de fora da área, a bola a beijar levemente a relva antes de entrar, imparável, no ângulo inferior junto ao poste. Um golo sublime. Logo a seguir, Bruma fez o segundo, anulado por interpretativa falta de Carreras no início da jogada. E depois veio a meia hora de sofrimento, com Bruno Lage a tentar segurar o magro resultado e o Sporting a sobrelevar-se.

Até que, Renato Sanches, o mais controverso dos jogadores deste plantel, numa corrida desesperada contra um inultrapassável Gyökeres faz penálti no minuto 90+10. Nesse instante, as luzes apagaram e a história do jogo ficou escrita. Já não interessavam os erros do árbitro, as agressões absurdas, que um vídeo-árbitro que tudo viu aqui deixou escapar, os golos, as substituições desesperadas, os minutos passavam pesados e castigadores sobre uma equipa em drama consigo própria e um adversário que mesmo sendo menor se suplantou como poucas vezes nas últimas décadas, numa vitória que ficará, também, para a sua história.

Mas, como sempre sucede no futebol, as derrotas são tão importantes como as vitórias. As derrotas são a argamassa que sustenta os pilares da glória e é das lágrimas, como as de Di Maria, que se alimenta o sonho que faz um clube, como o Benfica, ser eterno.

P.S. infelizmente, a política não é como o futebol. Ou será?

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Speakers' Corner 33

Combater o Chega, ouvir as pessoas

Os resultados de domingo foram um abalo telúrico na nossa democracia, que se vê a braços com um tsunami populista e reacionário como nunca se tinha visto em 50 anos. De facto, de todas as consequências do escrutínio, a avalanche do Chega, transformado na terceira, ou possivelmente na segunda força política nacional (à hora em que escrevo, faltam apurar os deputados da emigração, que podem dar mais dois mandatos ao Chega…), é o principal facto político destas eleições, mais até do que a carnificina no PS, embora ambas estejam, creio eu, relacionadas. Para lá do tripartidarismo, do populismo, do spinumvivismo e da derrota da esquerda, o que me parece mais relevante realçar nestas eleições é a vitória do antissistemismo.

Arrisco um exemplo local para avançar uma explicação para este crescimento assustador do Chega, que mais não é do que a consubstanciação do voto antissistema. Nos últimos dias, tenho participado em diversas reuniões sobre a questão do Ilhéu. Numa delas, com responsáveis locais dos dois principais partidos, levantava-se a questão do aproveitamento eleitoral do fecho do Ilhéu a banhos. Do lado do PSD, parecia medrar a ideia de que o partido teria vantagem eleitoral autárquica com o Ilhéu fechado, como forma de capitalizar na campanha. Do lado do PS, agitava-se a narrativa de que a culpa do fecho do Ilhéu era do Governo, logo, seria o PSD a ser penalizado.

A uns e a outros tentei, sem sucesso, alertar que o único partido que poderia tirar proveito político de um escândalo como o fecho do Ilhéu era o Chega, devido ao descrédito das pessoas face a dois partidos com responsabilidades repartidas e incapazes de resolver um problema que é de todos. Como era expectável, o Chega ganhou em Vila Franca. A principal razão para o crescimento do Chega é o cansaço, a zanga dos eleitores com os dois partidos que construíram a democracia - PS e PSD - e que, na mente das pessoas, são os verdadeiros responsáveis por aquilo que sentem ser o estado calamitoso do país, sem esperança, sem oportunidades e sem futuro. E é bem provável que as pessoas tenham razão. Aqui chegados (perdoem o trocadilho) o combate ao Chega faz-se na refundação democrática dos partidos do centro e, neste caso em especial, do PS, sob o risco de se matar a esquerda moderada em Portugal.

Menos de três anos depois de uma maioria absoluta com mais de 2 milhões de votos, o PS caiu para 1 milhão e quatrocentos mil votos e apenas 58 deputados. Nos Açores, o cenário é tão ou mais preocupante. De 4 deputados passou para apenas 1. Com a agravante de ficar praticamente empatado com o Chega no círculo regional e escandalosamente ultrapassado na ilha de São Miguel. Estes são resultados dos quais o partido não pode fugir. É uma mensagem claríssima que lhe está a ser dada pelos eleitores, e nem toda a falsa coragem do mundo pode fazer esquecer este fortíssimo cartão vermelho. A nível nacional, o partido soube reconhecer esta hecatombe; a nível regional, e citando as palavras de Sérgio Sousa Pinto na própria noite das eleições: se o PS não acabar com esta direção, esta direção acaba com o partido.

Se tivermos de encontrar uma justificação para estes resultados, ela está na falta de ligação entre os eleitores e o PS e o PSD. O Chega é um voto de protesto contra dois partidos que parecem ter capturado a democracia, colocando-a ao serviço dos seus interesses pessoais e não do povo ou do país. Não é à toa que a AD não teve maioria, que foi o Chega que o povo elegeu para bloquear a governação e será no Chega que votará quando este PSD voltar a falhar com o país. Se prosseguirmos neste caminho, em breve o partido do protesto tornar-se-á no partido de governo, levado em ombros por todos aqueles que se recusam a reconhecer as suas responsabilidades nesta deriva dos eleitores do centro rumo ao precipício populista e ao caos que nos olha desde o fundo desse abismo.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Speakers' Corner 32

Democracia Evolutiva

Este domingo que passou, exerci, pela primeira vez naquela que é já uma relativamente longa carreira de eleitor, o direito de voto antecipado. Por motivos literários, não estarei na ilha no próximo domingo, pelo que recorri a esta nova modalidade de acesso ao voto, num processo eletronicamente escorreito de inscrição e, como pude constatar pela fila existente na Câmara Municipal de Ponta Delgada, com uma entusiasmante adesão popular.

Das muitas áreas em que a nossa democracia precisa urgentemente de evoluir, facilitar o acesso ao voto é uma das mais prementes, alargando prazos e métodos, como é o caso do voto antecipado. Cinquenta anos depois das primeiras eleições livres, em sufrágio universal, e quando o país se vê mergulhado num labirinto democrático, incapaz de gerar estabilidade ou alternativa, melhorar as formas de relação dos eleitores com o voto é uma forma não só de reduzir a abstenção e comprometer os eleitores com as suas escolhas, mas, acima de tudo, de fazer evoluir e melhorar a própria democracia. A natureza da crise de representação a que assistimos não tem apenas que ver com os partidos ou as suas lideranças, mas também com a natureza do próprio sistema eleitoral e as suas falhas e omissões. Discuti-las e repensá-las devia ser um desígnio prioritário nestes cinquenta anos de Abril.

A representatividade do método D’Hondt. Os círculos eleitorais e a necessidade de um círculo de compensação nacional. A abstenção e as formas de a mitigar. Listas fechadas versus listas abertas. Listas de cidadãos. Partidos regionais. Sistemas eleitorais proporcionais, maioritários ou mistos. Todas estas questões deviam estar permanentemente em cima da mesa, como sinais de uma permanente e imperiosa atualização democrática. Diga-se, em abono da verdade, que tanto o BE como a IL têm propostas sobre estes temas, mas, como sempre, são PS e PSD os mais avessos à mudança e ao evoluir da nossa democracia.

Por princípio, sou intrinsecamente contra proibições e, como tal, também contra obrigações. O voto é um dever e não uma obrigação, e o verdadeiro teste democrático é verificar se os partidos e os candidatos têm, ou não, capacidade de mobilizar os cidadãos. Por outro lado, numa democracia evoluída, a opção pela abstenção é sempre igualmente legítima. Mas uma das formas de potenciar o voto seria a repetição dos atos eleitorais em círculos onde a abstenção for superior a 50%, instigando-se, assim, eleitos e eleitores a um esforço mútuo de maior participação e mobilização. Outra das reformas estruturais fundamentais seria a legalização de listas de cidadãos para os parlamentos, retirando-se aos politburos partidários o monopólio da propositura de candidatos. Este seria um passo decisivo em direção à pluralidade e à transparência, criando-se uma maior e melhor ligação entre eleitos e eleitores.

No atual momento da nossa maturação democrática, caracterizado por uma cada vez maior pluralidade de propostas políticas e partidárias, a criação de um círculo de compensação, que corrija as arbitrariedades e injustiças, nomeadamente as discrepâncias regionais entre círculos eleitorais inerentes à aplicação do método D’Hondt (um voto em Lisboa não é o mesmo que um voto nos Açores ou em Portalegre, por exemplo), torna-se também fundamental para dar a cada cidadão não só um voto, mas um voto verdadeiramente válido, e não desperdiçar milhares de votos, como atualmente acontece. Para que se perceba, nas últimas eleições legislativas, num universo de quase seis milhões e meio de votos expressos, 1.238.760 votos foram literalmente deitados ao lixo, entre votos nos pequenos partidos e votos insuficientes para eleger mandatos adicionais. Mais votos do que o total dos votantes do Chega, que elegeu 50 deputados. Mais de um milhão e duzentos votos que, na prática, não contribuíram para eleger ninguém. São números que, no mínimo, deveriam fazer pensar e, principalmente, fazer evoluir a nossa democracia.

 
OSZAR »